terça-feira, 31 de maio de 2011

Dias marcados



Cansei de pendurar calendários. Minhas paredes nuas só trazem marcas de sol. Agora sou eu quem faz os dias, lembro que ainda ontem decidi que era o seu. Você gostou e ficou hoje também. Houve um tempo em que eu podava palavras, à espera do momento perfeito, esse impresso em tinta fresca. Mas, besteira, lançar ocasiões para celebrar pessoas. O amor é eternidade limitada, começa quando quer e acaba do mesmo jeito. Declarações que esperam o 12 de junho pecam pelo excesso de planejamento. Bom mesmo é viver instantes, em vez de contabilizar datas.

O tempo é diferente em mim. Antigamente, preocupava-me em reter cada grão de areia antes de deixá-lo escapar. Já não controlo essa ampulheta maravilhosa, deixo que escorra, que leve e me traga. Os meses seriam todos iguais, não fosse nós dentro deles. Essa mania de contextualizar dias é só protocolo. O que conta é aquele décimo de segundo em que se corta a respiração, o arrebatamento da surpresa, a saudade aniquilada. Não é graça de um número que vai mensurar o afeto, se as lembranças acontecem sempre.

Conta-se que nasci há 6938 dias, e vivi 166512 horas. Mas as estatísticas ignoram quantos minutos gastei em lágrimas ou sorrisos sinceros. Dispenso a impessoalidade de vitrine estilizada para definir a época de pensar em alguém. Por amor, crio feriados diários e extrapolo o deadline. Posso até seguir a lógica repetitiva do calendário, mas a minha vida independe dele. Amanhã pode ser a última página, que não seja uma qualquer.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Último eremita


Na calçada de tantas pernas apressadas, repousava um homem fundido ao concreto. Não implorava moedas nem caridade, apenas contemplava o cenário, deixando-se ao sabor do inerte tal estátua esfarelada. Os dias e as pessoas escorriam pela presença translúcida, assim como os fios emaranhados de barba que cresciam sem se fazer notar. Se alguém perguntasse o que fazia ali, responderia de bom grado: estava pensando.

Nos últimos trinta anos, pressionado a seguir em frente e fazer alguma coisa, não havia tido espaço para refletir sobre os caminhos ou pesar as escolhas. Sempre lhe enfiavam uma ocupação pelos braços, que empilhava de qualquer jeito, por não saber ser tantos ao mesmo tempo. Estava cansado da vida que não fornecia intervalos. Ao contrário do que teorizavam os narizes torcidos, não era vagabundo. E pecara por nunca ter sido.

Em algum lugar no alto dos andaimes sociais, talvez a família tivesse notado a ausência. Deixara todos sem dizer nada. Acostumado a perseguir o centro, ápice glorioso da vida, quis ficar à margem. Há dessas vontades que escapam da compreensão alheia. Agora, recolhido ao silêncio da meditação, apenas o som do próprio corpo ecoava dentro dele. Tantas batalhas por tornar-se alguém, e ali estava, embevecido pelo anonimato. Não pretendia voltar. O mundo era pequeno demais para tantas identidades. Coragem mesmo era essa de não ser ninguém.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Nós


Existe algo venenoso nesses beijos viciantes, quando de repente não quero te perder nunca mais. Se o amor é intenso, qualquer olhar enviesado é ameaça em potencial. Eu me basto, mas não sei se sou suficiente para você. Todas essas dúvidas ardem na garganta enquanto finjo que está tudo bem. Não me acostumei a amar o que é belo, frágil e que jamais vai ser meu por inteiro. Temo pelo dia em que alguém vá tirá-lo de mim, e é assim que enxergo as bruxas que rondam nosso conto de fadas. Cega-me a razão de que, às vezes, o monstro sou eu.

Longe de expressar cuidados, ciúmes assim mata o carinho. Mil vezes perdi perdão e outra vez acabei com tudo. É incontrolável o peso morto que desaba no estômago e enfraquece a coerência. Mas não acha que, se pudesse escolher, eu tiraria de mim essa loucura? Que, se outras vidas tivesse, te amaria um pouco menos? Minha alma corroída angustia-se tanto quanto a sua se aborrece. Paciência. Ainda estou aprendendo o caminho das rosas.

É difícil acreditar no amor, tantos casamentos desfeitos e corações dilacerados já vi. Não sei confiar. Também não gosto de perder o controle. Meu ego é grande demais para caber em mim, e vulnerável demais à humilhação. E eu jurei que jamais deixaria de ser quem sou. Mas você sabe que é a minha maior fraqueza. Eu me apaixonei por você há tanto tempo, e ainda sinto as malditas borboletas. Acho que estou impregnada desses valores antiquados de honra. Se te cobro tanto, é porque me entreguei toda, eu que não sou pouca coisa. Espero respeito. Não apenas fiel, que seja leal.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Let it be


Certa vez, quando tinha seis anos, vi num livro sobre a Floresta Virgem, “Histórias Vividas”, uma imponente gravura. Representava ela uma jibóia que engolia uma fera.
Dizia o livro: “As jibóias engolem, sem mastigar, a presa inteira. Em seguida, não podem mover-se e dormem os seis meses da digestão”.
Refleti muito então sobre as aventuras da selva, e fiz, com lápis de cor, o meu primeiro desenho. Mostrei minha obra prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes fazia medo.
Respondera-me: “Por que é que um chapéu faria medo?”
Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jibóia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jibóia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações.

O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint Exupéry


Houve um tempo em que eu também desenhava elefantes em jiboias, e pessoas de gravetos, sem me importar com o mundo de verdade. Até porque, se desenhar a realidade fosse lógico, não existiriam espelhos. Mas então vieram os catedráticos, com suas lições de gramática e história, dizendo que para ser eu precisava mudar de raciocínio. Mudei, desenrolei os cachos, tornei-me diplomática. Que coisa. Continuo com saudades de mim.

Ninguém precisa construir pontes para dentro de si mesmo, nem explicar loucuras passageiras, como o riso que vem fácil. Que pena que a vida adulta nos faz bonecos de argila, moldados ao gosto de padrões e regras sociais de um mundo quadrado. Aprecio mesmo é a coragem de quem é inexplicável, sabe, anormal. Mas rejeito pessoas pré-concebidas. Não adianta ser diferente de mim, se for igual a todo mundo.

Acho que conquistei o direito de ser meio esquisita, então não venha me obrigar a enxergar o óbvio. Já descobri que quero ser eu quando crescer, viver assim de bem comigo pelo resto da vida. Andar descalça, cantar sem saber a letra, transcrever meu universo em prosa poética. E se eu quiser morrer de amor, tanto melhor pra mim.