terça-feira, 18 de setembro de 2012

Sapatos



Na calçada da escola, a menina chorosa descalçava as sapatilhas de balé. Os pezinhos miúdos contorciam-se 
de dor. A mãe amorosa tentava massagear os dedinhos espremidos contra a resistência do cetim aveludado. "É aqui que está machucado?", perguntava. Enquanto assistia à cena - verídica - ocorreu-me que a vida de toda mulher pode ser resumida em sapatos.

Mal sabe a pequena bailarina que o caminho é longo e seus pés ainda vão doer por muito tempo. Depois de praticar equilibrismo no scarpin da mãe, e de pegar carona nas longas passadas do pai, ela vai ter que aprender a dar seus primeiros passos em falso. Vai subir no salto e cair muitas vezes. Quando for um pouco mais velha, vai entender que é possível permanecer em pé - mesmo quando as pernas fraquejarem e parecer que o chão vai acabar.

Porque toda mulher sabe que, dentro de cada sapato, está escondida uma lembrança. Seja de noites
em que o calçado acabou enroscado debaixo da cama junto a um par de botas tamanho 43, ou quando dormiu com ele, bêbada demais para se lembrar de tirar. Nas havaianas descontraídas usadas no fim de semana, quando tudo que se quer é passar o dia inteiro com os tornozelos à mostra.Ou nas discretas e macias pantufas de tigre, consolo bom quando a noite é fria e os pés estão gelados.

Somos criaturas firmes que adoram sapatos, porque eles nos ensinam, desde cedo, essas valiosas lições
sobre resistir à dor. Em tamanhos variados e cores sortidas, mesmo aqueles que estão guardados há anos
no fundo do armário, os calçados lembram cada detalhe de nossa trajetória. Nunca nos cansamos deles.
Somos todas cinderelas em busca de sapatilhas de cristal perdidas. Mas gostamos mesmo é de acabar
com os pés descalços, livres e nus - de preferência pousados em uma panturrilha masculina.