segunda-feira, 26 de abril de 2010

Colírios da Capricho


Concursos de beleza são excludentes por natureza, conforme louvam rostinhos de porcelana e suas medidas perfeitas. O absurdo, já notável em versões infantis, é estimular a competição e o culto à imagem entre aqueles que mal saíram das fraldas. Se a sociedade aceita, os próprios pais exibem suas proles e o comércio patrocina, fazer o quê. Triste é quando a podridão emerge do
show business, escancarada e crua, para quem quiser contribuir. Afinal, debaixo dos holofotes toda imperfeição é digna de agressão. E é o que se confirma, lamentavelmente, no concurso que irá escolher o garoto mais fofo, bonito e talentoso do Brasil”.


Você acha isso normal? eu não!

Promovido pela revista Capricho, o campeonato de beldades juvenis “Colírios” coloca à disposição do público um mosaico de meninos belos e perfeitinhos, disputando entre si uma vaga na MTV (http://colirios.capricho.abril.com.br/o-que-e.php).

São batalhas no pior sentido do termo, uma vez que, novamente, imperam os traços imaculados da beleza convencional. O concurso é democrático, de forma que qualquer um pode construir um perfil com suas respectivas fotos. Mas o que se vê, no site, é uma esmagadora preferência por estereótipos.

Os candidatos, em sua maioria meninos de 14 à 17 anos, exibem seus atributos em poses convencionais, como a clássica foto do espelho. E aqueles que não agradam estão sujeitos a todos os tipos de ataque. Os comentários nos perfis menos badalados são extremamente ofensivos. Seria coerente que a Capricho, em sua condição midiática, não tolerasse os comentários de natureza preconceituosa. Mas, uma vez sujeitos à tamanha exposição, os insultos são irrefreáveis.

Os comentários dizem "tenta a sorte, orelha de bater bolo"

No comentário, o rapaz é taxado de feio e gay.


O detalhe mais triste da lista de meninos-tanquinho e suas franjas escovadas é que, muito além da beleza, é risível a falta de conteúdo e maturidade. Provavelmente, poucos serão homens formados, com consciência crítica e capacidade de desatolar o país. Uma revista tão popular entre os jovens deveria incutir em seus leitores um pouco do juízo e bom senso que a má educação, calcada em tecnologias de ponta e pais ausentes, ajuda a demolir. No entanto, tudo que consegue é rebaixar crianças fora do padrão e criar narcisistas.


O padrão atual de beleza masculina.



É, pois é.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Para onde fogem os monstros



Não se deixe iludir pela temática. Onde vivem os monstros? (Where the wild things are) não é um filme para crianças. Baseado em um livro infantil, tem um gostinho de filme independente, apesar de ser uma grande produção. Conta a história do camarada Max, um garoto cheio de criatividade e solidão que, a despeito do carinho que recebe da mãe, emana certa agressividade. Em um ataque inesperado por atenção, foge de casa pelos mares tempestuosos de uma viagem imaginária, rumo a uma ilha cheia de criaturas gigantes que também não conseguem entender a si mesmas. Não é apenas uma metáfora sobre a infância. É um retrato melancólico e cru sobre a convivência em sociedade.


É complicado viver. Os monstros do filme são assustadoramente reais. Cada um deles, à sua maneira, mostra como é difícil aceitar e depender do outro. Lembra que às vezes amamos tanto as pessoas, que nos esquecemos de compreendê-las. Somos tão selvagens quanto na medida em que, sem saber controlar nosso egoísmo, ferimos quem sempre está por perto. O último grande trunfo do filme é comprovar que a felicidade não é um objetivo a ser alcançado, um estágio pleno de gozo e diversão. Ela pode, simplesmente, ser o lado bom das horas ruins. Ou um lugar-comum extremamente familiar. Tão imperceptível e simples quanto o sol, que nasce todos os dias, mas, uma vez morto, levaria consigo a vida inteira.


Relacionar-se é um exercício de tolerância, paciência e respeito. E também é uma garantia de frustração. Por mais dóceis e queridos que sejam, os outros sempre serão os outros. Não vão sempre ser agradáveis, úteis, ou concordar com seus argumentos. E não vão ficar para sempre. Sem conhecer a própria força, alguém pode brincar de machucar, e machucar de brincadeira. Nós somos os monstros. Não precisamos de fortes, fantasias utópicas ou torres de isolamento. Só precisamos uns dos outros.



Aviso:
Dependendo do seu estado de ânimo, esse filme pode ser altamente depressivo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Pilot


O meu avô*, que Deus o tenha, era surdo feito uma porta. Fator que, lamentavelmente, condiz ser hereditário. Carrancudo, vivia arrastando os pés e reclamando de qualquer coisa. Não era afeito a diálogos, outro detalhe que a genética resgatou para completar minha inaptidão social. Mas, ao contrário de mim, sabia fingir que escutava. Os olhos não passeavam pelas terras remotas de um planeta distante: fixavam-se no rosto do inocente interlocutor, inclinando a cabeça de uma maneira ardilosa, como se estivesse de fato interessado. E, naquela pausa dramática que finaliza os longos discursos cotidianos e sinaliza o seu momento de contribuir com a conversa, disparava um charmoso e autêntico: “Pois é.”


Era assim simples, claro e indolor. Esse era um mestre da dialética. Conseguia satisfazer qualquer tagarela com uma única expressão. Seu “Pois é” era afirmativo, às vezes trágico, constantemente cômico. Se o Vô deixou um importante legado, é esse vocábulo dos Deuses que te poupa o raciocínio, e diz tudo o que não se entende. Ainda hoje me pego recorrendo a esse truque magistral, principalmente por quase nunca saber o que dizer.


Esse é um mundo esquisito. Exige de nós uma postura adequada, uma imagem perfeita, defende a liberdade de ideias, mas não nos incentiva a pensar. Quem é quieto, frequentemente é taxado de autista. Que me perdoem os sociáveis, mas eu ainda não aprendi a falar por atacado. Prefiro escrever. Assim, posso mastigar o assunto e escolher as palavras certas. Nunca estive com a razão, essa raposa indomável demais para pertencer a alguém. Mas, se liberdade de expressão é poder dizer o que quiser... Como o de Vovô, o meu “Pois é” vai falar até do que eu não sei.


* Colemar Guimarães, In memorian.