quarta-feira, 27 de abril de 2011

Aos solitários



Por muito tempo acreditei que era preciso ir à caça para encontrar tesouros, quando o mapa dos meus desejos estava escondido no bolso de um amor tão próximo. Não foi preciso desbravar mares infinitos, nem roubá-lo de ninguém: era meu, e ponto. Caiu em mim e serviu. Outras partiram e voltaram sem a mesma sorte, recolhendo velas de embarcações furadas. Alguém, talvez, estivesse esperando por elas no próximo cais, aquele justo o qual ninguém foi visitar. Mas não é outra força que arrasta a vida, se não os ventos do acaso.

Convenci-me de que a busca é o veneno do encontro. Procuras incessantes só revelam achados desnecessários. Corações solitários não devem alugar-se por qualquer preço, nem perder a fé de que um dia chega o inquilino. Não adianta desenterrar números antigos e apanhar o primeiro bonde rumo ao compromisso. Nem sempre estar junto é bom. Quem quer ser descoberto precisa, antes de tudo, achar a si mesmo.

Não existe amor pré-concebido. O bicho arredio ignora sugestões, por mais bonitas e adequadas que sejam elas. Vem e vai ao ritmo da maré, deságua em praias inesperadas. Navegar em direção a ele é inútil, a predileção é pelos distraídos. Em algum lugar existem mãos dispostas a segurar as suas pelo resto da vida, que vão se perder em outros corpos se as ânsias do querer imediato não permitirem alcançá-las. O segredo é aguardar. Como a rede lançada ao mar que espera, pacientemente, o cardume perdido.



quarta-feira, 20 de abril de 2011

Carta para quem a carapuça servir




Olha, você pode até ter mais dinheiro que precisa, uma aparência melhor que a média, ou talvez seja prestigiado por uma inteligência maior. Mas não me venha atropelar os ouvidos com seus tratores de superficialidade e prepotência. Eu não mereço. A saliva gasta em críticas caberia melhor em um diálogo com si mesmo. Quem é bom de verdade não tem tempo para reafirmar superioridade aos outros.

Tenho pena dos seus pais, que esqueceram de mencionar à criança mimada que o mundo não tinha dois sóis. A falta de humildade é um vírus que atinge gerações inteiras, e você é apenas um ramo podre que alguém deixou crescer. Dos valores distorcidos nascem as escórias da humanidade: os preconceituosos, os espancadores de mulheres, os esnobes. Narizes empinados por uma falsa sensação de soberania. Deixa eu te contar um segredo: o mundo é maior que o seu umbigo.

Sei que existem idiotas devorados pelo conhecimento. O narcisismo intelectual é uma crendice incrivelmente burra. Doutores, senhores da lei, mestres das ciências exatas e humanas. Que proclamam autoridade através de um diploma pendurado na parede. Meu amigo, méritos acadêmicos não significam posições elevadas, apenas provam que você foi privilegiado por boas oportunidades. Todos temos algo para ensinar, como também aprender. O colega maltratado por não saber fazer cálculos, ou porque ainda é iletrado, pode provar-se um homem melhor. Viver, essa ciência empirista que se aperfeiçoa através dos tempos, não é questão de saberes. Todos chegam e partem com a mesma decência. Na morte, não existem distinções. Se for para esbanjar alguma coisa, que seja caráter.


terça-feira, 12 de abril de 2011

Só mais uma crítica social

*Esta é uma história verídica.
Infelizmente.



Brasília não é covil de ladrões, como prega a mentalidade nacional. Também não é só vazio e Legião Urbana. Nem tudo acaba em pizza. Perdida em um ponto indeciso do espaço, a primeira cidade bipolar. Não sabe se chove, ou se faz sol. Mas de boas iniciativas também se faz o cotidiano da capital. Ideia original de Luiz Amorim, açougueiro, a biblioteca popular coordenada pelo Açougue Cultural T-Bone chamou bastante atenção da mídia quando foi inaugurada, em 2007.

Funciona assim: estantes de livros são colocadas nas paradas de ônibus da cidade. O acervo é composto de doações. Qualquer um que passar por ali pode apanhar um exemplar emprestado, mergulhar em aventuras incríveis e, inspirado no ideal cívico, devolver. Nos últimos dias, 3 anos depois de satisfeita a empreitada, uma triste situação.


Os livros estão desaparecendo. Cada vez mais raros nas prateleiras de ferro, os sobreviventes desfolhados enfrentam a dura batalha contra o descaso. A cultura que nasceu para viajar pelos lares bem intencionados e depois voltar a outro ponto de partida, de repente abortada no meio do caminho. No cartaz afixado na parede, a denúncia envergonhada revela: carroceiro é o culpado de roubar os livros. Esse senhor de idade, que provavelmente não sabe ou lê mal, encontrou uma finalidade melhor para aquele tesouro a céu aberto. Vendeu tudo por quilo.


Brasília não é covil de ladrões, mas o Brasil, aparentemente, tem fome. E não é de leitura.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Bullying: outra perspectiva


Os psicólogos infantis que me perdoem, mas antes do termo bullying entrar na moda, agressões alheias eram tratadas como qualquer outro obstáculo. Nas escolas, o truque era ignorar. Lição muito mais valiosa que aquelas apreendidas nas modernas sessões de psicoterapia: nunca deixe nada, nem ninguém, afetá-lo. Mostrar que se importava era a pior maneira de reagir, expunha fraquezas que alimentavam o sadismo do algoz. A vingança, normalmente, chegava depois da formatura, no sucesso daqueles ditos fracassados. Os duros percalços da vida escolar moldavam cada caráter. Não se incentivava vitimização.


Quando era menina, minha irmã mais velha chegou em casa com os joelhos sangrando. Na corrida inocente do recreio, havia sido dolorosamente atirada ao chão por uma perna mal intencionada que se intrometeu no caminho. Ela odiou profundamente o menino que lhe fez isso. Longe de comover meu pai, suas lágrimas renderam-lhe uma surra inesquecível. Segundo ele, a culpa era só dela por deixar-se cair. Embora cruéis, tais ensinamentos fizeram de nós duas mulheres melhores. Meus pais jamais entraram na escola para contestar autoridades, ou vieram em nossa defesa quando alguém atirava pedras. Eu precisei passar por tudo isso sozinha.


Se existe bullying, é porque alguma criança aprendeu que deve sentir-se superior aos outros. Parte do próprio lar qualquer noção de respeito, aos pais é creditada toda culpa pelas atitudes mesquinhas de seus rebentos superprotegidos. Do lado mais fraco, tampouco foi ensinado algo. Socialização e repúdio ao preconceito deviam constar nas cartilhas infantis. Crianças criadas na era digital desaprendem ofícios antigos, como jogar bola na rua e brincar de pique. Bombardeados pela cultura de massa, admiram traços esteticamente convencionais e tornam-se adolescentes precoces. Quem não faz parte desse universo repleto de códigos de aceitação é excluído. Bullying sempre aconteceu. O que mudou é a ferocidade de seu novo contexto, que espalha violência além do pátio da escola. Mas, como qualquer sofrimento, existe para ensinar resistência. Quem não for capaz de superar isso durante a infância, dificilmente terá coragem suficiente para enfrentar o mundo adulto.

Curiosidade: O menino que derrubou minha irmã, mais tarde, tornou-se o primeiro namorado dela.