quarta-feira, 22 de junho de 2011

Acasos de família

Foto por: http://pictureguy.deviantart.com/


Eu pensei que sabia me virar sem elas, as pessoas. Acreditei-me imune à solidão desvairada de não ter ninguém. Depois de tanto ser rodeada por vozes esganiçadas, agora mal suporto o silêncio constante: desaprendi o ofício da misantropia. Falhei na minha ambição mais constrangedora, de ser independente e viajada. Se arrisco a fuga, volto para casa com o rabo entre as pernas e peço dois copos de leite quente. Já não sei viver sem família.

Perder dói. Quando o amor é grande, então, o golpe deixa feridas incapazes de sarar. Amo tantos que não sei se tenho capacidade de arrancar infinitos pedaços de mim. Mas sem eles, não valeria a pena o tributo de qualquer choro. Consolo de uma lágrima é ter outras com as quais formar uma nascente. O importante é não deixar nossos elos enfraquecerem com o tempo, renovar em vez de esvaecer. Fomos feitos para resistir, como as raízes de árvore que se espalham sem deixar apodrecer as lascas mais antigas.

Eles podem ser tão diferentes de mim que mal cabem no meu sangue. Sabem irritar e cuspir no prato oferecido. Às vezes roubam minhas roupas e, em outras, minha paciência. Não importa. Sempre acabo voltando para os nossos churrascos e discussões. Precisei deixá-los para entender o quanto a solidão pode ser insuportável. Só os meus podem me lembrar de quem eu sou.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Caprichos

Foto de http://freckledmystery.deviantart.com


Nasceu assim, com lábios curvados de felicidade involuntária. Os médicos lamentaram a imperfeição, tentaram remediar o dissabor das gengivas atrofiadas, mas a mãe anunciou: que não ousassem costurar a beleza daquele rasgo. “Seu sorriso”, dizia à pequena menina, enquanto penteava-lhe o cabelo, “É a vírgula mais bonita que Deus colocou no mundo”. Assim cresceu Anabela. Sorrindo sem os olhos, sorrindo eternamente, até quando não queria.

Costumava fugir da tristeza dos outros. Seu rosto zombava da dor alheia, melhor economizar condolências e retrair-se nos próprios conflitos. Ela, que espelhava disposição, só sabia ser rancor. Odiava olhares enviesados, risadas abafadas, as piadas prontas feitas de covardia. Qualquer alegria estampada logo se dissipava na amargura dos ombros caídos. A moça do sorriso automático nunca ria.

Anabela não acreditava no amor. Em vinte e nove anos, nunca havia experimentado a euforia de uma paixão. De beijo, só um, roubado durante as mágoas da bebedeira. Nem isso resolvia a rigidez da boca irreverente. Quando Anabela conheceu Ricardo, o descolado novo vizinho, de imediato detestou tamanho bom humor. Se quisesse ser seu amigo, que falasse direito e arrancasse do rosto aqueles malditos óculos escuros. Ele obedeceu. As lentes escondiam um par de olhos vermelhos, lacrimosos, seu oposto mais cruel: mesmo com olhar de vidro, não sabia o que era chorar. Apertaram-se as mãos e nunca mais desfizeram. Pela primeira vez, ela sorriu por dentro.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Pelo direito de ser autêntico

Foto: http://the-universal-mind.deviantart.com/

Perguntaram-me: “Se você pudesse ser outra pessoa, quem você seria?”. Sorri, e muito educadamente respondi que queria ser eu. Não entendo porque diria o contrário, covardia abandonar a identidade de alguém que esteve comigo a vida inteira. Talvez desejasse um pouco mais de dinheiro e algum sucesso, mas deixar de ser eu, de jeito nenhum. Se o fizesse ofenderia os meus pais, que gentilmente doaram tempo e carga genética, para me fazer assim dessa forma. Há quem prefira cobiçar as curvas plastificadas de alguma celebridade enlatada, e buscar a metade do que nunca foi inteiro, como se perseguir o fantasma de outro rosto fosse a melhor forma de satisfazer a dor de sobreviver. Não é. Pior que o desamor, é o repúdio a si mesmo.

Existem padrões e modelos estéticos que distorcem mentalidades, mas o veneno do preconceito já é ruim o bastante sem autodepreciação. Boicotar-se por um ideal falho não vai remodelar feições. Sorrir talvez seja a maneira mais digna de embelezar-se, faz parte desses encantos que independem de aparência. É fácil lamentar a falta de atributos, o problema é valorizar os existentes. Questão de atitude, de andar sem descobrir as crateras do chão. Um pescoço erguido é capaz de esconder o sol.

Ninguém além de mim vai envelhecer desse jeito, nem morrer sabendo como foi. O segredo é aceitar-se. Encarar a máscara desgrenhada que surge no espelho com orgulho, entender que é normal estar alguns quilos acima do peso e que as pequenas imperfeições fazem o comum virar extraordinário. Não deseje o artificial. Há muitas formas de beleza, inclusive a sua.