domingo, 23 de outubro de 2011

Na rua


No meio do caminho, havia um par de sapatos. Tropecei neles, por ocasião de minha volta para casa, dois calçados de solo esfolado pousados no frio da calçada. De um maltrapilho, certamente, que de tantas andanças perdera os pés. Ninguém teve coragem de recolhê-los, causava embaraço e constrangimento, um item alienígena na rua burguesa. Esperavam que alguém viesse buscá-los. Mais que sapatos: eram pegadas.

Pois que me atentei ao óbvio ululante — a rua, encardida de tantas idas e vindas estranhas, faz-se de casa para muitos. Mas o meu lar, limpo e organizado, não é a rua de ninguém. Pesou-me a consciência, na figura das duas sapatilhas de pano, tamanho 42. Quantas estradas aqueles pés não haveriam de ter percorrido, pisando duro o dissabor da crueldade? Até pararem, quietos e tronchos, na minha esquina. Não foram encontrados outros pertences que pudessem dar indícios daquela presença tão fulminante. Esvaecera-se o resto do corpo, descalço.

Então, finalmente, apareceu dono para requisitar soberano os direitos da propriedade. Trôpego, dando voltas ao redor de si mesmo, as canelas roídas de feridas, veio esse homem perdido e os calçou. Levou embora os sapatos. Os moradores suspiraram de alívio: que não ousasse voltar, aquela chaga de humanidade, para perturbar a paz do condomínio. Da janela, observei o mendigo se afastar, na esteira do fracasso e da amargura. Compreendi que a rua não é feita de chão. A rua é feita de passos.

2 comentários:

  1. Ok, você não vai acreditar nisso, mas ouvi This Charming Man do The Smiths e me lembrei do teu blog. Bom sinal!

    O Grande Urso

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  2. Não conheço a música, mas depois dessa, até viro fã :D

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