quarta-feira, 15 de junho de 2011

Caprichos

Foto de http://freckledmystery.deviantart.com


Nasceu assim, com lábios curvados de felicidade involuntária. Os médicos lamentaram a imperfeição, tentaram remediar o dissabor das gengivas atrofiadas, mas a mãe anunciou: que não ousassem costurar a beleza daquele rasgo. “Seu sorriso”, dizia à pequena menina, enquanto penteava-lhe o cabelo, “É a vírgula mais bonita que Deus colocou no mundo”. Assim cresceu Anabela. Sorrindo sem os olhos, sorrindo eternamente, até quando não queria.

Costumava fugir da tristeza dos outros. Seu rosto zombava da dor alheia, melhor economizar condolências e retrair-se nos próprios conflitos. Ela, que espelhava disposição, só sabia ser rancor. Odiava olhares enviesados, risadas abafadas, as piadas prontas feitas de covardia. Qualquer alegria estampada logo se dissipava na amargura dos ombros caídos. A moça do sorriso automático nunca ria.

Anabela não acreditava no amor. Em vinte e nove anos, nunca havia experimentado a euforia de uma paixão. De beijo, só um, roubado durante as mágoas da bebedeira. Nem isso resolvia a rigidez da boca irreverente. Quando Anabela conheceu Ricardo, o descolado novo vizinho, de imediato detestou tamanho bom humor. Se quisesse ser seu amigo, que falasse direito e arrancasse do rosto aqueles malditos óculos escuros. Ele obedeceu. As lentes escondiam um par de olhos vermelhos, lacrimosos, seu oposto mais cruel: mesmo com olhar de vidro, não sabia o que era chorar. Apertaram-se as mãos e nunca mais desfizeram. Pela primeira vez, ela sorriu por dentro.

4 comentários:

  1. Muito bom!

    http://cricri-grilo.blogspot.com/

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  2. Se você escrevesse um livro continuando essa estória ou história... Eu compraria com certeza!! E olha que nem é o meu estilo... Parabéns, você é muito boa!

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